terça-feira, 10 de julho de 2007

os de antropologia são meus



Hoje era o dia. Era o dia de pegar as suas coisas e de tirar o fio desencapado da tomada. Clarissa chegou por volta das dez da noite, e, assim que entrou na Curva do Saldanha, o coração ficou pequeno. Agora era o meio do caminho e ela seguiria em frente. A rua, as esquinas e os prédios que antes abriam passagem para a pressa da chegada e para a ansiedade, agora se multiplicavam para deixar o tempo passar.

Será que ele está em casa?, pensava. Não importava saber, já que estava a uma praça da casa dele. Como de costume, buzinou para avisar que estava lá embaixo. A vira-latas Brigitte logo se atiçou no portão. Subiu lentamente as escadas, circundadas das plantas que plantara; agora grandes. Ficou orgulhosa do tomate-cereja samambaia, que logo iria avermelhar.

Sem palavras, o som era de uma música estranha, nova. No cinzeiro, metade de um charuto e as guimbas de sempre. Objetos antigos e livros espalhados pela sala. Clarissa começou a escolher os que queria. Há um mês, os livros haviam sido levados da famosa biblioteca da família Ramalhete, e agora, era a hora da partilha.

- Posso pegar este? – pergunta Clarissa.
- Pode levar o que você quiser.

Guimarães Rosa, Drummond, Simone de Beauvoir, Augusto dos Anjos, Elmo Elton, Nelson Werneck Sodré, Gilberto Freyre, Dines, Machado, Maupassant, Vinícius, Proust, dentre dicionários e livros de conversação em francês e italiano. O livro espanhol sobre orquídeas brasileiras era mais bonito que uma penteadeira do século XVIII. Ela gostou do livro sobre a história do Jazz, mas sabia que ele não iria deixar.

- E este, pode?
- Não, os de antropologia são meus – disse ele.

Disfarçadamente andou para dentro da casa. O pé direito alto faria falta de tanto ar, os quadros alegres que a irmã copiava de Miró, as casinhas coloridas de cerâmica na parede da porta de entrada, o tapete, o jarro quebrado. A gata estava no cio. A geladeira com os vidros de água vazios. O queijo e a salada no mesmo lugar. No banheiro, o chuveiro que antes era bastidor para uma noite sem fim, agora era um quadrado de azulejos azuis. Triste como os azulejos azuis.

Mais alguns minutos de poeira e mãos sujas, até a descida para o carro. Depois da última sacola, ele a chamou para fumar o último baseado. Ela sabia que não era. Ainda precisava voltar para pegar o violão e as xícaras de chá de maçã.
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7 comentários:

Anônimo disse...

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que de um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

(prá vc. pq é declamado pela Marina. pq vc não guarda nada em cofres. pq seus livros estarão sempre guardados e admirados. e as xícaras tb.)

leolinhares disse...

Na primeira curva tudo já estava claro para mim. Vi as calçadas estreitas e vazias, que horas antes estavam abarrotadas de pessoas em um vai e vém frenético. Uma coisa me entreteu, pediu tempo, o tomate-cereja samambaia.


Ps.:Fiquei até sem jeito de postar depois de ler o post da Gabi.

Anônimo disse...

nossa, que chique! vou fazer um blog de comments! rs

beijos, gata e gato!

au leléo

Anônimo disse...
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Sil disse...

Nossa Lili que lindo!
Dividir qualquer coisa que seja para mim ainda é uma tarefa complicada, apesar de muitas vezes necessária, sempre acho que podia ser diferente, mas...
Adorei a citação sobre a biblioteca da minha família, fiquei emocionada!!!
Beijos Linda!!!

Miguel Marvilla disse...

Eba! Vc voltou... e, melhor, não apenas colocou uns postes de luz para iluminar o caminho, como tb contratou arquitetos e decoradores. Tava difícil enxergar as coisas por aqui (sou míope, tenho astigmatismo — se é que não é medo do escuro, puro e simples —, preciso de muita luz).

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Agora, sobre guardar coisas, que a Gabi (oi, Gabi!) cita, parece que Alberto Caeiro, entre as aspas aí embaixo, também vem (muito) a propósito:

"Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver."

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Hmmmm... será que vale a pena voltar pra pegar um violão e umas xícaras de chá de sei lá o quê?

Beijos, moça. Vou pregar vc lá nos meus blogs de novo.

Anônimo disse...

Walmir escreveu...

A racionalidade também assusta e nem sempre é virtude.
Vitimado pela peste também estive, porém, não me convidaram para fumar o último.
Não acredito em choros necessários, mas aceito que a tristeza more comigo, de vez em quando, para sentar o pé no chão.
Deixamos tristes e ficamos tristes, construímos uma história, esculpimos nosso eu.
Alguns não suportam e partem em fuga, perdem a próxima sessão que fica inacabada, novos encontros, alegrias e quem sabe mais choro e depois é só continuar.

Tentei me fazer entender e não consegui. Nem eu mesmo sei o que escrevi, talvez a explicação veio algum tempo atrás quando antecipei o que deveria ter escrito hoje.

SEM PASSADO, PRESENTE E FUTURO


Há dias em que tudo é passado.
Então, volta-se o olhar para os novos dias que surgem.

Há momentos em que o futuro está sob um manto e
o presente fica recheado de incertezas.

Temos sede:
do futuro que não conhecemos,
do passado que ficou ausente,
do presente com brilho nos olhos.


Para tanta sede é necessário uma carga extra de fé,
patrimônio do aprendiz que procura aprender o caminho para viver,
sem distinção do que foi o passado, se tem presente ou, se há futuro.

Talvez, a lição seja essa:
Aprender a não situar o tempo,
apenas continuar... e continuar... e continuar...