sexta-feira, 18 de março de 2011

escrevo com o corpo

Marcinha, você abriu uma porta em mim.
Melhor crônica dos últimos tempos.

+ aqui: http://marciasavinocronicas.wordpress.com

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Escrevo com o corpo


Escrevo com o corpo, digo. O que falo, falo sobre o corpo. É no corpo que encontro o que escrevo aqui. Vivo de observar, embora de que adiante isso? Não há o que adiantar ou não, eu não sou relógio.
Alinhavo os temas segundo uma lógica que não se explica. Eu não sei por que se fala de tudo e de nada. Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas… Saberia eu dizer por que escrevi este verso que nem é meu? Saberia eu dizer por que venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas, se nem venho? Se nunca estive em Cuiabá? Se não sei o que se quis dizer com vielas entortadas?   

E, no entanto… e, no entanto, este verso me aparece assim – do nada, como gosta de dizer meu filho – enquanto rabisco um tema para minha necessidade de escrever. Gosto de dizer poemas. E no mês passado revi alguns poetas. Reencontrei meu último literário amor, Manoel de Barros. Cacei, cacei, mas não achei seu livro principal para mim, o das Ignorãças. E desde então, já há semanas, saio dizendo por aí que venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas…

Preciso explicar o que isto significa. É preciso dizer que este verso inicial vem me assaltando docemente a consciência há dias e dias. É preciso dizer que durante todo esse tempo não achei o livro ou o poema e, enquanto isso… enquanto isso, várias vezes recitei para fora ou para dentro, a frase de abertura da bela poesia. E olha que sei perfeitamente que não venho de Cuiabá de garimpos e afirmo que, nem mesmo depois de tanto pensar no poema, descobri exatamente o que seriam as tais vielas encorpadas. Paralelo algum consegui traçar comigo.

Ainda assim, continuei a clamar em ouvidos amigos o que não é verdade ou mentira: que de vielas entortadas que não conheço venho. Neste domingo preciso em que escrevo, encontrei o livro onde já o havia procurado e, com ele, as ignorãças de Manoel. Era a oportunidade para dizer o poema inteiro com toda ênfase. Mas, há um par de horas, na cozinha, eu não consegui dizer – apropriadamente e em voz alta – o poema inteiro que se abre com este verso. Embora ele estivesse todo ali no livro, eu não achava o verso em mim.

Então, subo e cochilo e levanto e me sento para escrever e, enquanto busco as palavras em meu corpo, salta-me o verso para as mãos, sem sequer me passar pelo pensamento. Quando vi, o tinha escrito, lá no início desta prosa. É como se eu o dissesse em voz alta, ainda sem saber por quê. É caprichosa, a crônica. Gerada em meio ao barulho, ao burburinho cotidiano, exige o silêncio absoluto da alma para dar o ar da sua graça ao pobre escritor que passa a vida desejando esse momento mágico de silêncio.

Eu não escrevo crônicas sobre nada. Eu sinto a crônica nascer no miolo de mim e escrevo. Só sei e só acho bonito fazer assim. Há um outro verso de Manoel, que diz: a voz de um cantador tem que chegar a traste para ter grandezas. Talvez. Talvez, sim.
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